Paredes, telhado, portão, encanamento e luz elétrica são alguns dos itens essenciais de uma casa. Para muitas pessoas de classes econômicas desfavorecidas, ter uma morada era um sonho distante, conquistado por programas de financiamento nos últimos anos. Porém, a necessidade do morar não se limita apenas ao residir: ter acesso digno às cidades e a todos os dispositivos de lazer, cultura, educação e saúde que os territórios dispõem também é fundamental. É isso que destaca a arquiteta e urbanista e diretora do Sindicato dos Arquitetos no Distrito Federal (ArquitetosDF) Mariana Bomtempo, 30 anos, formada pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Design and Urban Ecologies pela Parsons -The New School, em Nova York (EUA).
Tendo trabalhado na Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab) na gestão do arquiteto e urbanista Gilson Paranhos, ela destaca a importância de que arquitetos e urbanistas trabalhem com a lógica de não apenas construir moradia, mas em fomentar instrumentos que liguem o acesso à moradia ao acesso à cidade. “Desde a faculdade, devemos formar estudantes sensíveis às problemáticas do espaço, da casa ao espaço urbano, para que em sua vida profissional eles possam atuar seja em iniciativas privadas, de pequenas às grandes empresas, ou em iniciativas públicas, nas prefeituras, na gestão das cidades brasileiras, para que possamos pensar em realidades diferentes daquelas que estamos vivendo”, afirma.
Confira a entrevista completa com a arquiteta e urbanista:
Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) – O acesso à moradia é diferente do acesso à cidade? Por que fazer essa diferenciação?
Mariana Bomtempo – Há um entendimento distorcido de que o acesso à moradia é apenas a resolução da falta de um abrigo ou um lugar. Não só no Brasil, mas em muitos lugares do mundo é comum entender que para morar basta um teto. O que falta para as pessoas e, principalmente, para os gestores das cidades entenderem é que se há a migração do campo para a cidade é porque existe a necessidade de trabalho, educação, lazer, dentre outras oportunidades que encontramos com maior facilidade no espaço urbano. Uma vez que essas atividades não são acessíveis àqueles que moram nas cidades, não há o acesso à moradia adequada, muito menos o direito à cidade.
Podemos citar como exemplo o caso de Brasília que, segundo estudo da OECD (Divided Cities, 2018), se destacou como aquela em que pobres e ricos estão espacialmente mais distantes uns dos outros na cidade. O estudo levou em consideração mais de 100 municípios no mundo, incluindo cidades no México e na África do Sul, este último onde houve o regime do Apartheid. Isso se deve a anos de políticas públicas que entendiam que prover um lote muito distante do Plano Piloto, muitas vezes sem infraestrutura urbana para as pessoas morarem, já significava acesso à moradia. Nunca se questionava o fato da infraestrutura já existir no centro, na região do Plano Piloto, além das oportunidades de emprego, acesso à educação e lazer. Essas pessoas tiveram que construir sozinhas suas cidades, as casas, os comércios, os espaços públicos, e ao longo de muitos anos demandaram do poder público a construção da infraestrutura e equipamentos, que ainda é de baixa qualidade. O programa Minha Casa Minha Vida é outro exemplo de acesso à moradia sem acesso à cidade, uma vez em que os empreendimentos são construídos distantes dos centros urbanos, demandando extensos custos de urbanização e transporte que encarecem a vida dos trabalhadores que moram ali.
FNA – Como os arquitetos podem fazer com que esses dois pontos andem juntos?
Mariana – São importantes as diversas atuações que os profissionais de arquitetura e urbanismo podem ter para viabilizar cidades mais inclusivas, também é importante para os profissionais entenderem que se trata de um processo e que demanda tempo para que as coisas aconteçam. Dito isso, desde a faculdade, devemos formar estudantes sensíveis às problemáticas do espaço, da casa ao espaço urbano, para que em sua vida profissional eles possam atuar seja em iniciativas privadas, de pequenas às grandes empresas, ou nas iniciativas públicas, nas prefeituras, na gestão das cidades brasileiras, para que possamos pensar em realidades diferentes daquelas que estamos vivendo.
FNA – Na sua opinião, o que contribui para a exclusão dos menos favorecidos do acesso às cidades?
Mariana – A dificuldade da classe média em entender que a cidade é composta pela diversidade, de pessoas, classes, raças, gêneros, e que ela é um reflexo da sociedade em que vivemos. É uma compreensão abstrata e que talvez nunca será resolvida, mas que precisa ser exposta e debatida para que não fiquemos cada vez mais reclusos em grupos homogêneos e distantes uns dos outros. Em Brasília, como cada região administrativa é construída para uma determinada classe com padrão social, é muito recorrente algumas situações que não fazem o menor sentido, como o bairro de Águas Claras que é composto por altos condomínios fechados, cheios de espaço pet, gourmet, kids, enfim, e que recentemente saiu na mídia local grupos de moradores que reclamavam do barulho das sirenes dos bombeiros nas ruas. Como discutir acesso à cidade diversa e democrática com uma sociedade que é construída dessa forma? Na minha dissertação de mestrado, eu especulei sobre o tema da educação urbanística nas escolas, partindo do mesmo entendimento do que foi a educação ambiental para as últimas gerações. Podemos ver como hoje a sociedade é mais sensível aos temas relacionados à preservação do meio ambiente que em gerações anteriores, isso é resultado de anos de educação ambiental nas escolas. Entretanto, ainda há muita dificuldade em entender que as cidades inclusivas são extremamente importantes para a própria preservação dos recursos naturais existentes.
FNA – Na live da FNA, você teceu algumas críticas sobre o programa Minha Casa Minha Vida, principalmente pelo fato de como o projeto foi criado. Por quê?
Mariana – O Programa foi criado pelo Ministério da Fazenda como uma demanda das grandes construtoras para investimento público na construção civil como desculpa de ser uma indústria que emprega bastante devido à baixa qualidade da mão-de-obra brasileira. E assim o programa tem um embrião semelhante ao que foi o BNH e deste modo repetiu os mesmos erros. Com a intervenção do Ministério das Cidades, foi acrescentada a faixa 1 ao atendimento das demandas e, com a pressão das organizações civis de direito à moradia, foi criado o MCMV Entidades. Estes foram os dois fatores que conseguiram inovar em relação ao que havia sido realizado durante a ditadura militar. Infelizmente, a massa dos investimentos do MCMV não foram direcionados a essas duas inovações.
FNA – Na sua experiência da faculdade, como o tema da Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (Athis) foi abordado? Acha que foi satisfatório?
Mariana – Apesar de eu ter estado na Universidade pública entre os anos de 2007 a 2013, a Lei 11.888/08 nunca foi ponto de discussão durante meus estudos. Somente os estudantes que estavam dentro do Escritório Modelo naquela época tinham algum tipo de interação com a Assistência Técnica. Na Universidade de Brasília, as disciplinas de Habitação Social e Planejamento Urbano eram disciplinas optativas quando eu era estudante, e se eu não me engano, continuam sendo.
FNA – Você trabalhou na Codhab na gestão de Gilson Paranhos. Como foi essa experiência?
Mariana – Foi uma experiência intensa e única na minha trajetória profissional. Feliz ou infelizmente, foi em um momento de grande sensibilidade pessoal, quando eu tinha acabado de retornar do mestrado fora do Brasil e tive muitas dificuldades emocionais em lidar com o trabalho. Durante quase dois anos, fiquei em um espaço dentro da comunidade, a princípio era cedido e depois era da empresa que havia licitado o contrato dos projetos de Melhorias Habitacionais. Inicialmente, era bastante confuso e solitário, já que ficávamos eu e uma estagiária apenas e as demandas eram bastante difusas. As pessoas que moravam no local, muitas vezes curiosas, se aproximavam e assim fomos criando alguns laços. Depois, com a chegada de alguns estudantes voluntários e assistentes sociais, o cotidiano foi ficando mais produtivo, conseguíamos dar encaminhamento para as demandas, que eram muitas. A pressão por parte da população era grande, mas pelo menos havia ali obras de infraestrutura urbana, o que gerava muitos problemas, e como eu era a única técnica do governo que estava mais perto, tinha que lidar. Ao mesmo tempo em que era muito gratificante ver realmente a mudança toda no espaço e na autoestima das pessoas. Foi uma oportunidade única. Além disso, fomos os primeiros a desenhar uma política pública de investimento de dinheiro público em moradias precárias, o que foi bastante difícil e inovador. Também foram as primeiras obras que geri na minha vida profissional, o que realmente não era muito fácil de lidar quando não se tem nenhuma experiência prévia com obras, muito menos com gestão de contratos. Escrevemos um livro sobre a experiência de quase toda a equipe que esteve em campo, a versão digital está disponível para compra pelo link: http://hotm.art/gM8xcUEu
FNA – Como iniciar uma carreira rentável e segura na Athis? O que você aconselha para quem está se formando?
Mariana – Eu não sei responder essa pergunta, afinal eu trabalhei com Athis dentro do governo com cargo comissionado e a carteira assinada, e reconheço o quão privilegiada fui, levando em consideração a realidade profissional da nossa classe. O que eu costumo aconselhar meus estudantes é para que eles olhem em volta deles mesmos, onde moram, suas famílias, amigos e vizinhos, e como a realidade desses locais podem ser diferentes. A Athis dentro do que está na lei, famílias até três salários mínimos, é uma política pública que deve ser custeada pelo Estado, assim como o SUS ou a Defensoria Pública, mas os recém formados, principalmente que moram na periferia, devem se reconhecer como agentes transformadores daquele espaço que eles habitam e conhecem tão bem. Não há a necessidade de continuarmos replicando profissionais que só sabem atuar para as classes mais ricas, pois assim eles não reconhecem nem sua própria realidade em seus trabalhos. É o que me move como professora que tenho atuado nos últimos três anos.
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