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Maria Elisa Baptista: profissão esperança

“Todos os nossos esforços se dirigem para garantir a todos e a cada um dos brasileiros e brasileiras os direitos afirmados na Constituição: moradia, educação, saúde, liberdade.”. Esta foi a frase escolhida pela arquiteta e urbanista Maria Elisa Baptista quando questionada sobre o que mais gostaria de ouvir dos nossos governantes. De fato, essas poucas The post Maria Elisa Baptista: profissão esperança appeared first on FNA.Read More

“Todos os nossos esforços se dirigem para garantir a todos e a cada um dos brasileiros e brasileiras os direitos afirmados na Constituição: moradia, educação, saúde, liberdade.”. Esta foi a frase escolhida pela arquiteta e urbanista Maria Elisa Baptista quando questionada sobre o que mais gostaria de ouvir dos nossos governantes. De fato, essas poucas linhas definem e indicam também parte do compromisso assumido por ela quando optou pela carreira, o que reverbera até hoje, em seus 68 anos de vida, e na rotina como professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas e na presidência do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), cargo assumido em outubro de 2020, na condição de primeira mulher a comandar a entidade centenária. O IAB, sob sua gestão, também teve o desafio de fazer acontecer o maior evento global de arquitetura e urbanismo, o UIARio2021, encerrado na última semana e que foi um exemplo de organização, horizontalidade e democracia, reunindo em uma mesma plataforma profissionais e público interessados de diversas parte do mundo.
Segundo Maria Elisa, resistir e inventar modos de trabalhar comprometidos com aqueles que mais precisam são desafios que fazem parte do cotidiano de arquitetos e urbanistas.  É desse mesmo ‘cotidiano’ de dificuldades que emergem os futuros profissionais.  “Com as políticas de ampliação do acesso à universidade chegaram aos cursos de Arquitetura e Urbanismo jovens que enfrentam no seu cotidiano os problemas urbanos que tanto discutimos. Chegam com uma visão crítica e uma urgência na proposição que nos animam a não desistir”, pontua.
Para ela, o trabalho do arquiteto e urbanista depende da ação política, o que pode transformar boas práticas em boas políticas públicas, e que pode exigir o respeito aos princípios que a categoria defende.
Nascida em Belo Horizonte, mãe de Daniel (arquiteto e urbanista) e Julia (geógrafa) e avó de Gisela, Pietro, Augusto e Flora, Maria Elisa divide seu tempo – bastante agitado –  entre as aulas em um cockpit: duas telas, celular, laptop, fones, programas de desenho compartilhados, teams e zoom; compromissos e documentos do IAB (também à distância); e os afazeres da casa. Mas nas horas de lazer, o que impera é não ter horários estabelecidos. “Gosto de não ter horário, poder mergulhar em um projeto, um livro ou uma invenção, sem tempo de acabar e sem precisar interromper.”

*Confira a entrevista exclusiva concedida à FNA:

Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) – Vemos cada vez mais no Brasil uma necessidade urgente de políticas públicas para habitação e para as cidades juntamente com o desmonte de instituições públicas e da gestão do patrimônio. Diante disso, como o profissional da arquitetura e urbanismo pode resistir e fazer frente a esse cenário?
Maria Elisa Baptista – O Brasil já foi reconhecido como exemplo de planejamento e gestão em várias frentes. O Estatuto da Cidade foi saudado como uma das leis mais progressistas que conhecíamos, o Orçamento Participativo foi replicado em várias cidades do mundo, as leis ambientais que tínhamos eram contemporâneas das preocupações com o futuro do planeta. No entanto, nunca extinguimos o que nos marca desde as capitanias hereditárias: a prevalência da propriedade privada sobre os direitos coletivos e a desigualdade que daí emerge. Vivemos um hiato progressista encerrado com o golpe de 2016, e, a partir daí, estamos sofrendo retrocessos inimagináveis. Ao celebrar os 20 anos do Estatuto da Cidade, comentamos que, aqui, cada vez que precisamos nos valer de um direito é preciso reconquistá-lo. Para nós, arquitetos e urbanistas, essa é uma realidade cotidiana. Resistir, claro, e inventar modos de trabalhar comprometidos com aqueles que mais precisam de nossos serviços.

FNA – Como avalias engajamento dos profissionais, sejam eles recém-formados ou não, na luta pelas causas urbanas e ambientais? Considera que há um despertar para as questões mais voltadas ao social?
Maria Elisa – Os estudantes sempre foram propositivos, engajados e politizados. Claro que não todos, e em graus variados. Mas a juventude guarda essa coragem e a esperança que tanto precisamos. Com as políticas de ampliação do acesso à Universidade chegaram aos cursos de Arquitetura e Urbanismo jovens que enfrentam no seu cotidiano os problemas urbanos que tanto discutimos. Chegam com uma visão crítica e uma urgência na proposição que nos animam a não desistir. A busca por trabalho, fora do que é chamado mercado, já saturado e altamente insatisfatório, abre-se para o campo amplíssimo da assistência técnica, da assessoria às comunidades, da busca por soluções inovadoras de baixo custo. É um momento admirável. As causas ambientais mostram-se cada vez mais urgentes, e precisam ser nosso tema transversal.

FNA – Fala-se que a pandemia ‘escancarou’ as deficiências de infraestrutura das cidades brasileiras. Na sua opinião, essa crise sanitária é capaz de deixar um recado claro aos gestores sobre o que precisa ser feito e de que forma precisa ser feito?
Maria Elisa – A pandemia chegou ao Brasil em tempos absurdos. Estávamos há pouco mais de um ano sob um governo federal cujo presidente se elegeu sob a égide da violência e do descaso com as pautas sociais e ambientais. O palco das disputas políticas vinha se desenhando lado a lado com o desmonte dos setores da educação e da saúde, a rapina dos serviços públicos e a espoliação do patrimônio cultural e ambiental. Os problemas urbanos já são conhecidos e estudados, e sua solução sempre dependeu de forte ação política. Com a pandemia e a sucessão de erros que vimos na condução das medidas paliativas e preventivas, poucos lugares avançaram de fato no enfrentamento de tais problemas estruturais.  O programa do CAU RS “Nenhuma casa sem banheiro” precisa (e precisava há muito) ser nosso lema, nosso mantra. Garantir moradia digna, com a consciência de que há “tanta casa sem gente e tanta gente sem casa”, devia ser a primeira providência de governo. Veja, não há nada mais barato para o país que garantir moradia inserida na cidade para todo mundo. A economia em saúde, educação e segurança é gigantesca. Mas na grande escala continuamos errando, mesmo quando tivemos a chance de acertar. Os arquitetos e urbanistas, lado a lado com todas as nossas entidades, têm se esforçado junto a prefeitos e gestores para contribuir com visões inovadoras e exequíveis de gestão dos problemas urbanos, como na Carta aos Prefeitos e na Carta do Rio, lançada agora com as propostas do Congresso UIA2021RIO.

FNA – O papel do arquiteto e urbanista na construção de cidades justas para todas é soberano, mas como esses profissionais podem contornar adversidades que vão além da questão econômica e esbarram em vontade política?
Maria Elisa – Cada vez mais transformamos nossa atuação, antes centrada em trabalho autoral (embora, sabemos, nenhum arquiteto trabalhou nunca sozinho, sempre há equipes e colaboradores, e, em geral, arquitetas de nomes não divulgados…), em coletivos e grupos, muitos deles trabalhando diretamente com as associações e comunidades. Nosso trabalho depende da ação política, que pode transformar boas práticas em boas políticas públicas, que pode exigir o respeito aos princípios que defendemos. Essa ação política existe em muitos níveis, no Diretório Acadêmico, em nossas entidades, nos Conselhos e audiências públicas, na imprensa, e ocupando cargos no executivo e no legislativo. São muitas frentes, e arquitetos e urbanistas têm o que dizer e mostrar.

FNA -.   Neste primeiro ano na presidência do IAB, quais têm sido as prioridades de sua gestão, analisando também dentro do contexto do UIA 2021?
Maria Elisa – Tem sido um ano intenso. Estamos com as comemorações do centenário do IAB que se estenderão até dezembro, com o lançamento do livro IAB 1921 a 2021, uma publicação que pretende registrar fatos, depoimentos, documentos e imagens, artigos e resenhas. que retratem a rica trajetória do Instituto nesses 100 anos, além de estimular reflexões e propor caminhos de atuação do IAB para os dias presentes e futuros. No dia 22 de julho encerramos o 27º Congresso Mundial de Arquitetos, o UIA2021RIO, um Congresso extraordinário, e que só foi possível com a parceria desde o primeiro momento da FNA e do CAU BR. Contamos com o apoio de inúmeras entidades, arquitetos de todo o mundo, a FPAA e o CIALP, a REDBAAL, rede de bienais de arquitetura da américa latina, a UNESCO. O Congresso, cujo planejamento começou em 2014, estava previsto para 2020, e foi adiado pela pandemia. Mas apenas em 2021 vimos que seria completamente irresponsável realizá-lo presencialmente. Foi um esforço impressionante de todos para que ele acontecesse, tão lindamente, completamente digital, e nos deixando de bônus poder assistir toda a programação, extensíssima e de excelente qualidade, pelos próximos dois anos. Perdemos a chance de nos encontrar e abraçar, mas temos, ainda assim, esse presente. São muitos os agradecimentos a fazer. É uma honra ser presidente do IAB neste momento. Ainda no âmbito do Congresso, o IAB lançou o segundo GUIA IAB para a agenda 2030, e este é também um trabalho em parceria com as nossas entidades e com a UIA.

FNA – Como o IAB vem se articulando junto a outras entidades de cunho internacional, nacional e regional para mobilizar a categoria, atender às necessidades dos profissionais e às carências das cidades brasileiras?
Maria Elisa – Existimos dentro de uma rede interessantíssima, organizada temática e territorialmente. Os Departamentos do IAB criam uma capilaridade nacional, expandida pela criação de núcleos no interior de cada Estado, e se articulam com as entidades regionais de vários modos. Nacionalmente, estamos ao lado da FNA, da ABEA, da ABAP, da FeNEA, da AsBEA. Nem sempre as lutas são as mesmas, mas este é mais um ponto a favor dessa interlocução, pois nos faz abranger um sem-número de questões, unidos pela certeza de que nosso ofício é importante para a sociedade e para a construção de um país justo e generoso. Estamos reunidos no CEAU, atuando junto ao CAU, nosso conselho profissional, criado por um grande trabalho conjunto. Participamos de coletivos temáticos muito amplos, como o Fórum de Entidades em defesa do Patrimônio, a Frente pela Vida em defesa do SUS, e tantas outras. Internacionalmente, fazemos parte e atuamos no CIALP, Conselho Internacional de Arquitetos de Língua Portuguesa, na FPAA, Federação Panamericana de Associações de Arquitetos e, claro, na UIA, União Internacional de Arquitetos.

FNA – Em sua trajetória profissional, acompanhando diversos cenários e momentos do país, gostaria que comentasse sobre um período que se destacou seja positivamente ou negativamente.
Maria Elisa – Entre a alegria e a ludicidade da eleição de Lula e a esperança que se ergueu no Brasil naqueles anos, e a agressividade e a violência resultantes da eleição de 2018 há um contraste tão grande que é difícil dizer mais. Imaginamos um país respeitado, inclusivo, superando desafios históricos, protegendo sua gente e seu território. Foi um hiato maravilhoso na nossa longa trajetória de descaso com o que realmente importa. Para nós arquitetos, houve muito trabalho, e participamos ativamente da formulação de políticas e ações. Ainda havia muito a percorrer, a construir, a consolidar, não se faz tudo isso em tão pouco tempo, seria um trabalho de duas ou três gerações para reverter nosso quadro de desigualdade congênita. O golpe de 2014 interrompeu e trouxe à tona o que temos de pior, as heranças terríveis das quais não nos livramos.  Penso que este nosso tempo é um tempo duríssimo, porque tivemos o gosto do que poderíamos ser em alguns momentos ao longo de nossa história, e, no entanto, precisamos sempre recomeçar, reconstruir, resistir. E nosso tempo vai se esgotando, com o acúmulo de problemas ambientais de alcance planetário. Mas este é o tempo que nos coube, não é? E faremos o melhor, ainda bem que somos arquitetos e urbanistas, essa profissão esperança….

FNA – Quais são as pautas que estão na ordem do dia neste ano de centenário do IAB?
Maria Elisa – Sempre as pautas que nos dão voz na defesa da vida e da memória. Além daquelas a que já me referi, estamos pondo no ar um novo site/plataforma que abrigará o acervo do IAB, disponível para consulta, fará uma ponte com nossas entidades internacionais, publicará pesquisas e artigos, estará relacionado à plataforma de concursos, à plataforma de projetos ARBO, ao site das Bienais Internacionais de Arquitetura de São Paulo, aos Congressos Brasileiros de Arquitetos e ao UIA2021RIO, trará os GUIAS IAB para a agenda 2030, e muitas coisas mais. Ainda em construção, já pode ser visto em iab.org.br. Temos, ainda, uma extensa pauta de cursos e debates temáticos, e uma série que se iniciará em setembro que fará um paralelo entre as cartas de propostas oriundas dos Congressos Brasileiros de Arquitetos desde o século passado e nossa realidade atual. São muitas as ideias.

FNA – É possível imaginarmos quem será – e como será – o profissional arquiteto e urbanista do futuro considerando os tempos sombrios de hoje?
Maria Elisa – Sempre penso que nosso ofício é um ofício do cotidiano e da imaginação, esse olhar sobre a realidade do mundo para dela propor que mude. Essa certeza de que o mundo pode ser melhor do que é. Sermos arquitetos e urbanistas no Brasil, hoje, não é fácil. Que significado essa ideia de país tem adquirido para nós! Um país espoliado, explorado, trágico e violento. E, ainda assim, tão cheio de possibilidades e riquezas de lugares, gentes, culturas. É nessa realidade que somos chamados a projetar e a construir. Com cuidado e coragem, como diz Ailton Krenak. A consolidar o papel e a dimensão cultural, civilizatória e libertária da Arquitetura. Em tempos tão difíceis, inimagináveis como esses nossos, a esperança é sempre coletiva, e é isso que estarmos juntos em nossas representações políticas nos dá: a solidariedade, o imaginar juntos o futuro. Nosso ofício nunca foi tão necessário, e o empenho de todos, principalmente dos jovens, nos dá a certeza de que há muito a fazer, e que faremos.

Foto: Julia Piancastelli

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