Leticia Szczesny/ Imprensa FNA
Extensão do que mulheres enfrentam diariamente nas ruas, nas casas e nas universidades, o patriarcado e as condutas machistas estabelecidos no âmbito profissional ainda são uma luta travada por arquitetas e urbanistas e por tantas outras profissionais que buscam igualdade de gênero. Uma delas é a arquiteta e urbanista Paula Fernanda Rodrigues, conhecida profissionalmente como Paula Ferdinan, de 34 anos. Natural de São Bernardo do Campo (SP), ela é uma das 156 mulheres que integraram a chapa mais votada para compor o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU/SP) na gestão 2021-2023, triênio em que, pela primeira vez, uma mulher irá comandar a autarquia. Paula faz parte das comissões de Comunicação e de Fiscalização.
Formada há 10 anos pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), a arquiteta iniciou sua politização e se envolveu de forma mais efetiva com o tema da disparidade de gêneros na profissão quando trabalhou no Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (SASP). Lá, ao lado de outras profissionais, Paula ajudou a dar vida ao Grupo de Trabalho Mulheres na Arquitetura (GTMA), do qual foi uma das coordenadoras até 2019. Buscando conscientizar as mulheres quanto à existência do preconceito na esfera trabalhista e, até mesmo, pessoal, o grupo promoveu diversas ações e movimentos, como campanhas para chamar a atenção sobre a importância da denúncia. “Dentro de um sindicato os trabalhadores devem ser defendidos e apoiados e, nesse contexto, as mulheres, principalmente, pois são elas quem sofrem mais assédio moral e sexual em todos os ambientes”, declara.
Paula é uma das sócias-fundadoras do Castanha Coletivo de Arquitetura (@castanha.coletivo). Acompanhada de outras três arquitetas, ela tirou o empreendimento do papel em 2019 e, desde então, realiza reformas e consultorias focadas na arquitetura de interiores. “Nossa intenção é trabalhar da maneira mais horizontal possível para tornar a arquitetura justa e acessível, inclusive com parceiros e fornecedores. Nós temos esse histórico de trabalhos anteriores com ATHIS, então buscamos criar essa rede de conexões que valorize e fortaleça pequenas iniciativas de negócios”, explica.
Confira a entrevista completa com a arquiteta e urbanista:
Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA) – Apesar de serem maioria no país, as arquitetas e urbanistas ainda enfrentam inúmeros desafios diariamente. Quais são os mais frequentes na profissão e porque eles ainda existem?
Paula Fernanda Rodrigues – Os desafios das arquitetas são os mesmos que as mulheres enfrentam diariamente fora do ambiente de trabalho. O que as profissionais passam nos escritórios, nas prefeituras, é apenas uma extensão, um reflexo do que passamos todos os dias por causa do machismo e da estrutura patriarcal. Quando saímos do escritório, assédio moral e assédio sexual acontecem no plano urbano também, na rua e dentro de casa. O desrespeito com as mulheres e a desconsideração com o nosso trabalho está em todos os âmbitos. Não acho que dentro da arquitetura exista alguma questão específica, podemos até falar de alguns pontos, mas é importante situar o preconceito que as mulheres sofrem no âmbito geral. A transformação do tratamento dado ao papel da mulher no campo profissional tem que acontecer em todas as profissões.
Pensando em alguns empecilhos que as mulheres sofrem e que acompanhei enquanto trabalhava no Sindicato, por exemplo: é muito comum que as mulheres sejam relegadas a alguns nichos dentro do escritório de arquitetura. As estagiárias mais novas podem ser colocadas em mesas na frente, sob alguma desculpa, mas de fato para recepcionar clientes e fornecedores. A área de projetos normalmente fica com homens, inclusive na extensão no corpo docente em universidades, enquanto as mulheres ficam sujeitas muitas vezes à parte administrativa e operacional. Em grandes escritórios isso acaba acontecendo muito. A questão do assédio também é comum nas universidades. Nós recebemos diversos relatos de preconceito de gênero na distribuição de notas, de professores fazendo comentários abusivos em tom de brincadeira e envergonhando as alunas, comentando sobre o corpo delas e menosprezando seu trabalho. A discriminação se amplifica ainda mais no caso de arquitetas negras e LGBTQI+.
Agora, a maternidade é o grande nó indissolúvel. No campo da arquitetura ainda não existe esse cuidado, onde as mulheres consigam conciliar a vida profissional e a maternidade. Elas acabam tendo que se dedicar a uma tarefa ou à outra, sob o risco de ficar sem o salário ou sem emprego, se estão em um escritório onde não têm a estrutura para manter os direitos da gestante. Se ela é autônoma, por exemplo, não tem como continuar com os projetos, ou finaliza com grande dificuldade e sem nenhuma segurança financeira e acaba perdendo clientes. Os abusos acontecem já nas entrevistas de emprego, né? Quem nunca recebeu a pergunta: “e você pretende ter filhos logo?” e outras do gênero.
FNA – A vitória da Chapa CAU+Plural nas eleições do CAU/SP representa um avanço em igualdade no colegiado e na profissão? Podemos ter esperança de um futuro mais igualitário?
Paula – Foi certamente um avanço conjunto. Em São Paulo, foi uma vitória acachapante e não esperada, estávamos confiantes, mas não sabíamos que seria um sucesso tão grande. O processo foi muito bacana e bastante horizontal. Encontros virtuais de 156 mulheres bem no meio da pandemia, que desejavam modificar alguns comportamentos caducos ocorrentes na instituição em busca dessa representatividade da profissão. É muito legal trabalhar somente com mulheres, pois tudo fica muito organizado, divertido, eficiente e mais prático!
Em relação à chapa eu destaco dois pontos importantes: o fato de ser uma chapa vitoriosa eminentemente feminina demonstra que os arquitetos estão mais conscientes da importância de ter essa representação dentro das instituições de classe, mais correspondente à distribuição de gênero na formação total de arquitetos e arquitetas no estado. Além disso, revela o desejo de mudança em relação ao que o CAU/SP tem sido até agora desde sua criação, em 2010. Certamente, essa chapa foi icônica.
Nós tivemos problemas, tentativas de impugnação. Há empecilhos, preconceitos. Os arquitetos que são mais retrógrados olham para o trabalho da chapa, essa disposição das mulheres de participar, como uma questão de identidade. E não é isso. É uma questão de representação de fato. Tirar do poder aqueles que estão habituados a isso e distribuir melhor esses cargos para que a tomada de decisões fique o mais democrática possível. Se podemos ficar um pouco mais otimistas? Acredito que sim. É um otimismo baseado no nosso trabalho diário e calcado no trabalho de muitas outras mulheres que abriram caminho para a gente já há décadas.
FNA – Você trabalhou de 2014 a 2018 como uma das coordenadoras do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres na Arquitetura no Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (SASP). Nesta época, quais foram as principais áreas de atuação do grupo?
Paula – De 2014 a 2018 trabalhei na Comunicação do SASP. Em 2015, foi formado o GTMA. O trabalho do grupo foi muito importante, porque rompeu algumas barreiras dentro da instituição. A nossa maior vitória, na época, foi conquistar e aprovar a paridade de gênero dentro do Sindicato para a próxima gestão. Não conseguimos, porém, incluir esse termo no estatuto. Além disso, apoiamos iniciativas como a revista Mulheres Invisíveis, tivemos o início de um trabalho de atendimento psicológico dentro do Sindicato para mulheres que sofreram assédio. Infelizmente, o SASP passou por diversos entraves e, hoje em dia, o GTMA já não está em atividade plena.
No entanto, durante o período em que estava em atividade realizamos diversas palestras, lançamento de revistas, debates com arquitetas negras, como Joice Berth, e nos Encontros Estaduais de Arquitetos nós sempre tínhamos uma mesa específica para os debates desse tema das mulheres na profissão e na cidade. Foi um trabalho muito enriquecedor. Eu gostaria que essas comissões de gêneros estivessem em todos os sindicatos de todos os estados e também nos CAUs. A pauta das mulheres nos escritórios, a questão da maternidade, do respeito ao trabalho intelectual e ao direito autoral das mulheres têm que ser uma discussão constante para que a gente consiga sempre se manter alerta para que esse poder conquistado não se perca. Sempre temos que estar alertas.
FNA – Como grupos como o Mulheres na Arquitetura podem contribuir para uma profissão com mais equiparidade?
Paula – Um dos pilares do GTMA era a questão da educação política, da conscientização dessas mulheres de que existe o machismo, o preconceito de gênero e de que o assédio é um fator real. Partíamos deste ponto de reconhecimento e conscientização no ambiente de trabalho, onde muitas mulheres, principalmente as mais novas, acabam não reconhecendo que aquilo está acontecendo, e tratam algumas situações como algo normal, muitas vezes vinda de um chefe, de um colega de trabalho, de clientes. O objetivo do grupo, por estar dentro do Sindicato, era melhorar as condições trabalhistas das arquitetas, por meio da exposição da opressão de gênero, da conscientização e do fortalecimento mútuo frente a essa violência e da busca por ferramentas práticas de ação para casos de opressão.
Tínhamos uma série de histórias em quadrinhos semanais com artistas mulheres, onde retratávamos essas situações cotidianas de machismo. Depois da conscientização, nós pensávamos em ações. Essa era a parte mais difícil, porque o Sindicato não tinha muita perna para agir, por isso pensamos no atendimento psicológico. Essa é uma discussão que precisa ser ampliada para a classe para tentar encontrar a solução. O que fazer com os casos de assédios já ocorridos? O que fazer quando a mulher reconhece que isso está acontecendo? Como impedir e conscientizar a todos? Esse é um debate que ainda ficou por acontecer e que eu acredito que tenha que ser incentivado em todas as instituições de arquitetura no país.
FNA – Qual seu conselho para mulheres que ainda estão na faculdade ou estão entrando no mercado de trabalho?
Paula – Eu já sinto uma diferença muito grande geracional dessas meninas que estão se formando agora e a minha. A geração delas é muito mais ousada, mais consciente do que a minha. Por exemplo, na minha faculdade quase não se falava neste tópico. A minha politização nesse quesito foi depois de 2013. Temos algumas pioneiras como a Terezinha Gonzaga, que estudou o assunto da mulher no urbano, do preconceito já na década de 90, mas eu não fiquei sabendo disso até conhecer o Sindicato. O meu conselho para essas meninas que estão se formando agora é que elas estudem muito essa questão da mulher e a questão da classe, pois há já muito material disponível para que a mulher arquiteta se envolva politicamente. Dentro do GTMA nós incentivamos os grupos de discussão nas faculdades, a organização e as ações coletivas como fazer panfletagem, encenações. Temos que encarar essa luta da mulher como uma atividade inerentemente política e que tem que ser feita com afinco, com cuidado, com responsabilidade e com firmeza.
Se eu pudesse eu também falaria: pensem sempre na questão da conscientização. Porque muitas mulheres não sabem e é nosso papel, de quem está mais consciente da situação, de passar isso adiante. A união entre as mulheres para encontrar soluções é o caminho. Fale sempre, exponha as situações, não guarde para si. Fale com outras mulheres, com outras pessoas e busque ajuda, porque a pior coisa é aguentar achando que somos culpadas pelas situações ou que não há nada que possa ser feito. As melhores soluções são sempre coletivas
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