“A omissão é um pecado. Patrimônio é responsabilidade minha, sua, de todos.” Assim, Mário Mendonça de Oliveira, profissional respeitado da Arquitetura e Urbanismo e do meio acadêmico, transfere para essa entrevista sua opinião sobre a necessidade de que toda as pessoas, ricos e pobres, estejam inseridas em movimentos pela defesa do patrimônio material e imaterial do Brasil. Formado em 1961 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (FAUUFBA), assumiu a disciplina de História da Arquitetura na mesma época e, desde lá, como ele mesmo diz, luta para levar um olhar crítico a seus alunos sobre a importância da defesa da memória brasileira. Aos 84 anos e aposentado, atua como docente do laboratório de Ciência da Conservação, que ele mesmo criou na UFBA. Sua vivência em história e conservação lhe dá carta branca para criticar todo e qualquer ataque pretendido ao patrimônio nacional. Mas, como ele mesmo diz, esse não é um papel apenas de algumas áreas do conhecimento, e defende que todas as universidades brasileiras incluam em sua grade curricular uma disciplina voltada à conservação das riquezas brasileiras.
Como o cidadão brasileiro pode contribuir para a preservação do patrimônio nas suas cidades?
Mário Mendonça de Oliveira – Se cada um fizer apenas a sua parte nada vai acontecer. A conservação do nosso patrimônio depende fundamentalmente do apoio do povo, do conjunto de pessoas. Ficamos, na maioria das vezes, dependentes do governo nesta função, mas esquecemos que o patrimônio não é do governo, é do povo. A população é quem tem que zelar por isso. O que não podemos é calar a nossa boca diante das irregularidades que se fazem, das omissões que acontecem por parte dos órgãos públicos em relação à conservação da nossa memória. Precisamos ser exemplos do testemunho de que um povo que não tem memória é um povo sem destino, que não sabe de onde veio e não sabe para onde vai. Essa articulação entre as pessoas é muito importante. A preservação do patrimônio depende muito da cobrança de toda a população.
Individualmente, qual o primeiro passo para iniciar-se esse processo de luta e respeito pela memória?
Oliveira – A primeira coisa a se observar é o próprio uso do patrimônio, ou seja, quando ocuparmos um espaço que seja de importância cultural é preciso ter um cuidado extra, tanto na condição de usuário normal quanto de proprietário. E, de outra parte, quando se deparar com qualquer irregularidade não se calar, mas sim, colocar a boca no trombone, denunciar, ir aos órgãos e pressionar as instâncias governamentais para que se cumpra a lei da preservação, que impede desfigurar, modificar, corromper qualquer aspecto formal de edificações para que sirvam de memória às gerações futuras.
O brasileiro reconhece a importância de toda a riqueza que tem?
Oliveira – Não sabe. Apenas um grupo muito limitado de pessoas tem esse conhecimento. Admiro muito o povo brasileiro e o considero notável, mas vamos dizer que, culturalmente, ele não compreende a profundidade e a importância do patrimônio, e, muito menos, a necessidade de sua participação no processo de conservação. Esse é um problema local. Quando vamos à Itália, Espanha, Portugal, embora com exceções, vemos uma grande participação, preocupação e zelo da população em torno do seu patrimônio. Claro que, assim como no Brasil, em alguns casos os interesses econômicos se sobrepõem aos interesses conservacionistas. Isso existe em todo o canto, mas aqui no Brasil é mais evidente e mais fácil de ocorrer. Interesses escusos, estranhos e que não servem para a preservação da nossa memória prevalecem sobre a lembrança do povo. Eu, por exemplo, não me calo. Sou um indivíduo muito afável com as pessoas, com meus alunos e colegas, mas quando se trata de patrimônio não tenho medidas, sempre digo o que tem que ser dito. Minha idade não me impede de ser agressivo neste aspecto. Quem afeta o patrimônio afeta a mim diretamente. Sinto na minha pele, é algo pessoal mesmo. E não digo de boca simplesmente: escrevo e vou ao colegiado da minha universidade, alerto os colegas sobre os problemas que acontecem. Já fiz isso diversas vezes, o que me rendeu alguns desafetos.
Qual a melhor forma de promover essa sensibilização?
Oliveira – Repito: o povo que não sabe de onde veio, não sabe para onde vai. As nossas raízes, o que fazemos no percurso da nossa história é o que vai nos balizar na vida e criar um juízo crítico sobre tudo o que fazemos, as coisas certas e as erradas. E a participação das áreas afins é fundamental neste processo, isso inclui a Engenharia, que muitas vezes se mostra mais fanática pela causa. Há muitos deles em meu laboratório. As coisas não poderiam estar do jeito que estão. Sinto que as ações efetivas são poucas e digo que falta objetividade das áreas afins. Tudo fica muito no discurso, quando o que precisamos são ações efetivas, meter a mão na massa e evitar que caia (o patrimônio). Não vale só lamentar que está caindo e, sim, fazer acontecer e impedir que não caia. É preciso transformar discursos e projetos em prática.
Diante desse cenário, quais são os desafios para manutenção do patrimônio?
Oliveira – Bem, faltar recursos sempre falta, e para todas as áreas. Agora está pior ainda pois fica claro que patrimônio não é prioridade. Mas, o que falta também é consciência e informação. Acredito que as universidades do Brasil deveriam ter uma disciplina que fosse comum a todos os cursos, voltada à conservação do patrimônio e da memória. Na Medicina, por exemplo, os alunos têm que olhar para o passado e saber quem foram os grandes médicos que ajudaram a construir e a desenvolver esse país. É preciso alavancar o trabalho em prol da memória em todos os níveis e em todas as áreas do conhecimento. Não falo apenas do patrimônio material, mas do patrimônio imaterial mesmo, que traz consigo as raízes de um povo, de uma sociedade.
Como professor, o que diria sobre o papel da universidade na formação dessa consciência?
Oliveira – De uma maneira geral, não há essa formação. Teoricamente, como o patrimônio histórico está ligado ao material, ao edifício, basicamente fica restrito diretamente às áreas de Arquitetura e Engenharia. Não é possível que não se tenham disciplinas que abram os olhos das pessoas. A formação, informação e consciência vindas de áreas afins é muito pouco em relação ao que precisa ser feito pelo patrimônio. Precisa estar disseminada em todas as carreiras, porque memória diz respeito a tudo e a todos, não é só papel de arquitetos e urbanistas e engenheiros.
Como você vislumbra o futuro do patrimônio?
Oliveira – Há muito a ser feito. O que vejo é o enfraquecimento do prestígio das áreas voltadas ao patrimônio, diante da atuação governamental. Perdemos a capacidade de opinar e de fazer por falta de recursos e por falta de apoio moral. Estou preocupado, mas não sou um derrotista. Pelo contrário, temos que lutar para que a defesa do patrimônio entre nos trilhos. E, uma sugestão para ampliar a participação popular neste processo é colocar em prática programas educacionais que possam ser acessados por todas as camadas da população, sobretudo pela baixa renda, que não tem acesso ao nível universitário. É um dever fazer com que esse público seja inserido na luta pela preservação do patrimônio. Precisamos ter um povo preparado, formado e consciente. Assim, faremos a nossa parte e teremos argumentos para quando formos abrir a boca e reivindicar. A omissão também é um pecado e patrimônio é uma responsabilidade minha, sua, de pessoas cultas e de pessoas menos cultas. Eu tenho esperança de que o povo brasileiro, de maneira geral, não somente a elite, um dia venha a ter essa formação e consciência da necessidade de preservação da nossa memória. É isso que eu espero do Brasil de amanhã. E, como professor de História da Arquitetura, é pelo o que sempre lutei. E tenho comigo, desde 1961, quando assumi como professor, a missão de fazer com que meu aluno olhe com respeito a obra de seus antepassados. Minha luta vem de longe.
Foto: Carolina Jardine
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